Sátira dos Filósofos Gregos
Hérmias, o Filósofo
Hérmias, o Filósofo
I
§1. O bem-aventurado apóstolo Paulo, escrevendo aos coríntios que habitam a Grécia da região lacônica, disse: "Caríssimos, a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus". Ao falar assim, ele não errou o alvo, pois parece-me que a sabedoria deste mundo começou com a apostasia dos anjos, e esta é a causa pela qual os filósofos expõem as suas doutrinas sem estar em harmonia ou de acordo entre si.
§2. Dessa forma, alguns deles dizem que a alma é fogo; outros, que é ar (os estóicos); outros, inteligência; outros, movimento (Heráclito); outros, exalação; outros, que é força que emana dos astros; outros, um número que se move (Pitágoras); outros, água fecundante (Hipou); outros, um elemento composto de elementos; outros, harmonia (Dinarco); outros, sangue (Crítias); outros, espírito; outros, mônada (Pitágoras), e... os antigos o contrário. Quantos discursos sobre essas coisas, quantas disputas, quantas discussões de sofistas que discutem por discutir e não para encontrar a verdade!
§2. Dessa forma, alguns deles dizem que a alma é fogo; outros, que é ar (os estóicos); outros, inteligência; outros, movimento (Heráclito); outros, exalação; outros, que é força que emana dos astros; outros, um número que se move (Pitágoras); outros, água fecundante (Hipou); outros, um elemento composto de elementos; outros, harmonia (Dinarco); outros, sangue (Crítias); outros, espírito; outros, mônada (Pitágoras), e... os antigos o contrário. Quantos discursos sobre essas coisas, quantas disputas, quantas discussões de sofistas que discutem por discutir e não para encontrar a verdade!
II
§3. Tudo bem que não estejam de acordo sobre a essência da alma, se afirmassem com unanimidade tudo o mais que disseram sobre ela. Sobre o prazer, por exemplo, alguns dizem que ele é um bem supremo; outros, um mal; outros, alguma coisa entre o bem e o mal. Quanto à sua natureza, alguns a concebem como imortal; outros, mortal; outros, que permanece por um pouco de tempo; outros, que ela se transfere para um animal; outros, que se dissolve nos átomos; outros, que se reencarna três vezes; outros lhe atribuem períodos de três mil anos. Com efeito, pessoas que não chegam a viver cem anos fazem promessas para três mil anos futuros.
§4. O que dizer disso tudo? Ao meu parecer, charlatanice, ou insensatez, ou loucura, ou dissensão, ou tudo ao mesmo tempo. Se encontraram a verdade, estejam ou ponham-se de acordo e eu de boa vontade lhes darei crédito. Contudo, se me arrancam a alma e a arrastam de uma para outra natureza, de uma para outra substância, de uma matéria para outra, confesso que fico incomodado com esse flutuar das coisas. Num momento eu sou imortal e me alegro; pouco depois já sou mortal e começo a chorar; depois me dissolvo em átomos, me transformo em água, me transformo em ar, me transformo em fogo. Logo depois não sou mais nem água, nem ar, nem fogo, mas transformam-me em fera ou me tornam um peixe. Depois sou irmão dos delfins. E quando olho para mim mesmo, fico com medo do meu corpo e já nem sei como chamá-lo: homem, cão, lobo, touro, pássaro, serpente, dragão ou quimera, uma vez que os filósofos me transformam em todo tipo de animais terrestres ou aquáticos, multiformes, selvagens, mansos, mudos, canoros, irracionais ou racionais. Ao mesmo tempo nado e vôo, ou me arrasto, corro e me sento. Ainda por cima, Empédocles me transforma em mata.
III
§5. Assim como os filósofos não foram capazes de encontrar de modo unânime a natureza da alma do homem, menos ainda iriam afirmar a verdade sobre os deuses ou o mundo. Isso é no mínimo um atrevimento, para não dizer uma idiotice. Com efeito, aqueles que não foram capazes de encontrar a própria alma, vão pesquisar a natureza dos deuses; e os que não conhecem o seu próprio corpo, investigam cuidadosamente a natureza do mundo.
§6. No que se refere aos princípios da natureza, uns se opõem a outros: Anaxágoras me toma consigo e me dá a seguinte lição: "O princípio do universo é o 'nous' ou inteligência. Ele é o autor e senhor de todas as coisas, que põem ordem no que é desordenado, movimento no que está imóvel, distinção no confuso e beleza no que não é belo" . Gosto de ouvir Anaxágoras dizer isso e adiro ao seu ensinamento. Mas contra ele se levantam Melisso e Parmênides. Parmênides anuncia poeticamente que a essência é coisa única, eterna, imóvel e em tudo semelhante. Sem saber como, eu me transfiro para esse dogma.
§7. Parmênides expulsou Anaxágoras da minha mente. Mas, quando penso estar em posse de um dogma estável, Anaxímenes se intromete, gritanto: "Eu, porém, te digo: o universo é ar, e este, condensando-se e solidificando-se, transforma-se em água e terra e, rarefazendo-se e espalhando-se em éter e fogo e, voltando de novo à sua natureza, em ar..." Também me acomodo com isso e torno-me amigo de Anaximenes.
IV
§8. Mas aí está frente a frente Empédocles, resmungando e gritando em alta voz a partir do Etna: "Os princípios do universo são o ódio e a amizade, esta unindo e aquele separando, e a luta entre os dois realiza tudo. Eu os defino como semelhantes e dessemelhantes, ilimitados e com limites, como eternos e que têm começo" . Bravo, Empédocles! Estou disposto a seguir-te até a cratera do vulcão.
§9. Mas aí está agora Protágoras, puxando-me para outro lado, quando diz: "O limite e o critério das coisas é o homem; o que lhe cai sob os sentidos são coisas, e o que não cai não se encontra entre as espécies da essência". Lisonjeado com esse raciocínio, fico gostando de Protágoras, pois ele atribui tudo o mais ao homem.
§10. Tales, porém, me desvia para outro lado com a verdade, definindo a água como princípio do universo: "Do úmido tudo se compõe e nele tudo se dissolve, e a terra se sustenta sobre a água". E por que não acreditar em Tales, o mais velho dos jônios? Todavia, o seu concidadão Anaximandro afirma que o movimento eterno é um princípio mais antigo que o úmido, e que por ele algumas coisas nascem e outras perecem. Deve-se, portanto, acreditar em Anaximandro.
V
§11. Mas também não é famoso Arquelau, que afirma que os princípios do universo são o calor e o frio? Todavia o grandiloqüente Platão não está de acordo com ele, pois afirma que os princípios do universo são Deus, a matéria e o modelo. Agora sim eu fiquei convencido. Com efeito, como não hei de acreditar no filósofo que inventou o carro de Zeus? Atrás dele, porém, vem o seu discípulo Aristóteles, invejoso do seu mestre pela construção do carro, e define outros princípios: a ação e a passividade. O princípio ativo, que é o éter, é impassível; o passivo tem quatro qualidades: secura, umidade, calor e frio. Com efeito, tudo nasce e morre pela transformação desses princípios.
§12a. Já estou cansado de ir para cima e para baixo com opiniões diferentes; vou ficar com o que Aristóteles pensa, e que ninguém venha me incomodar com os seus discursos.
VI
§12b. Mas o que vamos fazer? Acontece que alguns velhos mais antigos do que esses mexem comigo como se eu fosse um boneco. Ferecides, com efeito, diz que os princípios são Zeus, Ctônia e Cronos. Zeus é o éter, Ctônia a terra, e Cronos o tempo. O éter é o princípio ativo, a terra o passivo, e o tempo o elemento em que se encontra aquilo que nasce. Há alguma inveja entre os velhos, pois Leucipo considera tudo isso como tolice e diz que os princípios são o ilimitado, o sempre móvel e o mínimo, e que os corpos das partes mais leves, subindo para o alto, se tranformaram em fogo e ar; os mais densos, fixando-se embaixo, transformam-se em terra e água.
§13. Até quando ficarei aprendendo tantas opiniões sem conseguir nenhuma verdade? A não ser que Demócrito me livre de andar errante, afirmando que os princípios são o ser e o não-ser, e que o ser é o cheio e o não-ser o vazio. O cheio no vazio, por sua posição e figura, faz o todo. Talvez eu aderisse ao nobre Demócrito e gostasse de estar com ele sorrindo, se eu não fosse dissuadido por Heráclito, que está sempre chorando e que me diz: "O princípio do universo é o fogo e seus estados são dois: a rarefação e a densidade; uma é ativa, a outra passiva; uma une, a outra separa". Já estou satisfeito e já estou bêbado de tantos princípios.
§14a. Mas também Epicuro exorta-me para que eu não despreze sua formosa doutrina sobre os átomos e o vazio, pois é no entrelaçar-se destes que, com seus vários modos e figuras, tudo nasce e perece.
VII
§14b. Não vou te dizer que não, ó Epicuro, o melhor dos homens! Acontece, porém, que Cleantes, levantando a cabeça do poço, zomba de tua doutrina e, com a sua corda, puxa os verdadeiros princípios, que são Deus e a matéria. A terra se transforma em água, a água em ar, o ar é levado para cima, o fogo vai para as regiões em volta da terra, a alma penetra em todo o mundo e, participando dela, todos nós somos animados.
§15. Além desses, que já são tantos, ainda me inunda outra multidão proveniente da Líbia, Carnéades e Clitômaco com todos os seus seguidores, que pisoteiam todas as doutrinas dos demais. De sua parte, eles afirmam paladinamente que tudo é incompreensível e que, junto com a verdade, sempre se apresenta uma enganadora fantasia. Então o que farei, depois de estar passando miséria por tanto tempo? Como vou tirar de minha cabeça tantas doutrinas? Com efeito, se não há nada de compreensível, adeus verdade entre os homens, e a tão decantada filosofia não faz outra coisa senão lutar com sombras, ao invés de possuir a ciência dos seres.
VIII
§16. Do mesmo modo, outros da antiga tribo, Pitágoras e seus companheiros, graves e silenciosos, entregam-me outros dogmas, como mistérios, e entre esses, aquele grande e secreto: "Eu o disse". O princípio do universo é a mônada e, de suas figuras e números, nascem os elementos. O número, a figura e a medida de cada um, eles o declaram mais ou menos assim: o fogo resulta de vinte e quatro triângulos, fechados por quatro equiláteros; cada um dos triângulos equiláteros é composto de seis triângulos retângulos, e por isso o comparam justamente com uma pirâmide. O ar resulta de quarenta e oito triângulos, fechados por oito equiláteros; é comparado ao octaedro, que se fecha por oito triângulos equiláteros, de modo que o total dá quarenta e oito. A água resulta de cento e vinte triângulos, fechados por vinte triângulos iguais e equiláteros, assemelhando-se ao icosaedro, que consta de cento e vinte triângulos iguais e equiláteros. O éter é composto de doze pentágonos equiláteros e assemelha-se ao dodecaedro. A terra é composta de quarenta e oito triângulos e está limitada por seis quadrados equiláteros. É semelhante a um cubo, pois o cubo é limitado por seis quadrados, dos quais cada um se decompõe em oito triângulos, de maneira que o total dá quarenta e oito.
IX
§17. Certamente Pitágoras mede o mundo. Então eu também, divinamente possuído, desprezo pátria, mulher e filhos, e não me importo nada com eles, mas subo até o próprio éter e, tomando o cúbito de Pitágoras, começo a medir o fogo. De fato, não basta Zeus para medi-lo. Se este grande vivente, este grande corpo, esta grande alma que sou eu, não subo em pessoa para medir o éter, lá se vai o império de Zeus. E, uma vez medido, tendo Zeus sabido por mim, quantos ângulos tem o fogo, descerei novamente do céu, comerei azeitonas, figos e legumes. Depois, pelo caminho mais curto, irei até a água e medirei em cúbitos, dedos e semidedos a substância úmida e determinarei sua profundidade, para informar a Posêidon qual é a extensão de seu império marítimo. Percorrerei a terra inteira em apenas um dia, calando seu número, sua medida e suas figuras. Com efeito, sendo quem sou e com a idade que tenho, estou seguro de que não omitirei nenhum palmo de todo o universo. E eu sei o número das estrelas, dos peixes e dos animais; e, pondo o mundo numa balança, não me custará nada saber o seu peso.
§18a. Assim, até agora, a minha alma se preocupa com essas coisas, para conseguir o domínio de tudo.
X
§18b. Todavia, inclinando-se para mim, Epicuro me diz: "Amigo, tu mediste um mundo, mas existem muitos e até infinitos mundos" . Assim, novamente me vejo forçado a medir outros céus e outros éteres, e estes em grande número. Que seja! Sem perda de tempo, depois de arrumar provisões para alguns dias, empreenderei a viagem aos mundos de Epicuro. Com facilidade, vôo sobre os limites do mundo, Tétis e o oceano e, entrando em um mundo novo, como se fosse outra cidade, em poucos dias o meço todo. Daí, vou mais além, a um terceiro mundo, depois a um quarto, quinto, décimo, centésimo, milésimo e... aonde mais? De fato, lança-se sobre mim uma sombra de ignorância, um escuro engano, uma fantasia sem fim e uma incompreensível insensatez. Por outro lado, por que deixar de medir até os átomos, dos quais se formaram tantos mundos? Não se pode deixar nada sem verificar, sobretudo coisas que são necessárias e úteis, das quais depende a felicidade da família e do Estado.
§19. Expus amplamente tudo isso para demonstrar a contradição que existe nas doutrinas dos filósofos e como a investigação das coisas os leva até o infinito e indeterminado. O objeto deles é incomprovável e inútil, pois não é confirmado por nenhum fato, nem por nenhum raciocínio claro.
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Fonte: Veritatis Splendor (http://www.veritatis.com.br)
Tradução: n/c
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