A Cidade de Deus
Capítulo XI.
Fim da vida temporal, prolongada ou breve.
Santo Agostinho.
Tradução de Oscar Paes Leme.
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Capítulo XI
Fim da vida temporal, prolongada ou breve.

Prolongada fome, dizem, consumiu grande número de cristãos. Não é outra provação que a piedosa paciência dos verdadeiros fiéis transforma em vantagem sua? Para aqueles que mata, a fome representa, como a doença, completa libertação dos males desta vida; para os que poupa, lição de abstinência mais rigorosa e jejuns mais prolongados. Quantos outros cristãos, porém, trucidados, engolidos pela inexorável morte que se multiplica de maneira espantosa! Sorte cruel, mas comum a todos os destinados a esta vida. O que sei é não haver morrido pessoa alguma que não devesse morrer um belo dia. Ora, o fim da vida reduz a igual medida a mais longa e a mais curta, pois coisa nenhuma é melhor, ou pior, ou mais longa, ou mais curta na igualdade do nada. Que importa, pois, de que espécie de morte morremos, se, depois de mortos, não podemos ser constrangidos a morrer de novo? Como as peripécias diárias da vida suspendem, por assim dizer, sobre cada cabeça mortal a ameaça de número infinito de mortes, não é melhor, pergunto, enquanto perdura a incerteza da que há de vir, sofrer apenas uma e morrer do que continuar vivo e recear todas? Não ignoro que nossa covardia prefere viver longo tempo no temor de tantas mortes a morrer uma vez para não continuar receando nenhuma. Uma coisa, entretanto, é o que causa horror aos sentidos e à imbecilidade da carne, e outra, a convicção esclarecida e profunda do entendimento. A morte não representa nenhum mal, se sucede a vida santa; não pode ser mal, senão pelo acontecimento que a segue. Que importa, por conseguinte, a seres necessariamente votados à morte o acidente de que morrem? Importa, isso sim, o lugar para onde vão, depois da morte. Ora, os cristãos sabem que a morte do pobre bom entre os cães que lhe lambem as feridas é incomparavelmente melhor que a do rico que expira na púrpura e no linho. Pois bem, como poderiam essas mortes horrendas prejudicar os mortos, se viveram bem?
Fonte: Santo Agostinho. A Cidade de Deus: (contra os pagãos), Parte I. Tradução de Oscar Paes Leme. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
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